No domingo, 23 de fevereiro, São Paulo recebeu os gigantes do The Cult com a turnê comemorativa de 40 anos da banda, a 8525. Antes da capital paulista, o grupo havia passado pelo Rio de Janeiro no dia anterior e encerraria sua passagem pelo Brasil em Curitiba, no dia 25.
Foram oito longos anos de espera. A última vinda do The Cult ao país havia sido em 2017, durante a turnê do álbum Hidden City, lançado em 2016. Com uma leve mudança na formação, a banda liderada por Ian Astbury (voz) e Billy Duffy (guitarra) veio acompanhada por John Tempesta (bateria), o integrante mais longevo além dos fundadores, Charlie Jones (baixo) e um membro pouco mencionado: Matt McKenna, responsável pelos teclados e pela guitarra base. Sua presença faz diferença, já que os arranjos das gravações costumam contar com mais de uma guitarra, embora ele fique discretamente posicionado na lateral do palco, fora do campo de visão principal.
Baroness: peso, técnica e energia antes da celebração do The Cult
Escalados para a abertura dos shows poucas semanas antes do início da turnê, os americanos do Baroness aqueceram o público que lotou o Vibra São Paulo. Formada por John Baizley (guitarra/vocal, que também assina as artes das capas dos discos da banda), Gina Gleason (guitarra/backing vocal), Nick Jost (baixo) e Sebastian Thomson (bateria), a banda apresentou um set de dez músicas que percorreu praticamente toda sua discografia.
Seu som, que mistura elementos de sludge, rock progressivo e outras influências, pode não ter uma conexão direta com o The Cult, mas foi bem recebido pelo público. John, extremamente enérgico e carismático, contornou eventuais problemas de som (comuns para bandas de abertura) com simpatia e bom humor. Vale destacar também a performance intensa e dinâmica do baterista Sebastian Thomson, que manteve a energia do show sempre em alta. Em alguns momentos é notável a influência de bandas como Tool e Mastodon, mas com a identidade do Baroness, um exemplo perfeito de influência bem aproveitada e não uma cópia propriamente dita.
A participação do Baroness como banda de abertura aconteceu exclusivamente na passagem brasileira da turnê. Após o show em Curitiba, no dia 25, cada banda seguiu seu
próprio caminho pela América Latina, com o The Cult dando sequência à sua celebração de 40 anos e o Baroness promovendo seu mais recente álbum.
Baroness - Setlist:
Last Word
Under the Wheel
A Horse Called Golgotha
March to the Sea
Shock Me
Chlorine & Wine
Swollen and Halo
Tourniquet
Isak
Take My Bones Away
Sem maiores delongas, o Baroness encerrou seu set e deixou o palco para que a equipe técnica preparasse tudo para a atração principal da noite. Enquanto a montagem avançava, o som mecânico ajudava a criar a atmosfera perfeita para o que estava por vir, com músicas de artistas que, em algum momento, se conectaram — pelo menos em termos de sonoridade — com a fase clássica do The Cult. Entre eles, Nick Cave, The Cure, Depeche Mode e Siouxsie and the Banshees.
A troca é rápida e, como Ian Astbury mencionou em entrevista ao jornalista Igor Miranda para a Rolling Stone Brasil, "o The Cult não é entretenimento". Não há backdrops, telões ou grandes elementos visuais. O palco é montado de forma simples, com a ambientação do show sendo conduzida apenas pela iluminação.
Um detalhe curioso que chamou a atenção dos fãs aconteceu no final da preparação do palco: um dos integrantes da equipe técnica percorreu o espaço “defumando” os instrumentos, os colegas de equipe e até o público próximo à grade com algo que parecia ser sage (sálvia, em tradução literal). O gesto, quase ritualístico, deu início à atmosfera mística da apresentação. Isso é puro Ian Astbury.
Com o show marcado para as 21h30, um atraso sem motivos óbvios ou visíveis começou a deixar o público impaciente. A situação se tornou constrangedora quando, após 15 minutos, vaias já podiam ser ouvidas na plateia. Cada nova música no som mecânico era recebida com mais sinais de insatisfação. O que aconteceu nos bastidores, jamais saberemos.
The Cult: um ritual intenso, mas desperdiçado pelos pseudo-fãs
A Marcha das Valquírias, de Wagner, anunciava o início do culto (sem trocadilhos intencionais). Apesar da casa cheia, desde o começo era possível perceber um certo descontentamento no ar.
Algo que vale destacar é que o The Cult só não é maior porque não quis. Os primeiros álbuns foram sucessos consecutivos, culminando no auge comercial com Sonic Temple, de 1989. No entanto, ao longo da carreira, a banda se recusou a “se vender”, mesmo que isso significasse não lotar arenas ou vender milhões de discos.
Costumo dividir os fãs em três grupos: os que acompanharam a fase pós-punk/gótica do Dreamtime e do Love; os fãs de hard rock, atraídos principalmente pelo Electric e Sonic Temple, talvez até chegando ao Ceremony; e aqueles que, como esta que vos escreve, seguem a banda em todas as suas fases e sempre estiveram lá para apoiar.
Os primeiros a se posicionar no palco são John e Charlie, seguidos por Billy Duffy, sempre à direita. Os primeiros acordes de In the Clouds — faixa que ficou de fora do álbum homônimo de 1994 (ou, como os fãs chamam, o “disco do bode”) e que está presente na coletânea Pure Cult — ecoam pelo Vibra. Em meio a saudações calorosas, a entidade Ian Astbury faz sua entrada.
Essa música reflete bem a sonoridade atual da banda. Na verdade, ouso dizer que o The Cult faz desde 1994 já era “moderno” para a época e continua soando atual. Ainda assim, as origens da banda sempre se fazem presentes nos detalhes.
Sem pausa, Rise, do ótimo Beyond Good and Evil, deu sequência ao set. A recepção foi um pouco mais calorosa — seu riff marcante e refrão enérgico dificilmente deixam alguém parado, nem que seja apenas acompanhando as batidas de Tempesta com a cabeça. Mas foi na terceira música que até os mais tímidos se entregaram e devolveram a energia que a banda oferecia. Wildflower, hit do Electric, foi cantada por quase todos os presentes. Afinal, ir a um show do The Cult e não conhecer esse hino é, no mínimo, peculiar — salvo os curiosos, é claro.
É difícil escrever sem ser tendenciosa, já que o The Cult é minha banda favorita. Mas o setlist, no geral, faz todo o sentido — é a essência da banda, passando por praticamente todas as suas fases (com exceção de Ceremony, Born Into This e Hidden City que não tiveram músicas incluídas nas apresentações).
Foi aqui, porém, que a energia do público despencou. Não por culpa da banda, de forma alguma, mas porque a maioria dos presentes parecia pertencer aos tipos 1 e 2 que mencionei anteriormente.
Star, um dos singles do “disco do bode”, veio na sequência, com um arranjo excepcional. Em seguida, The Witch, single produzido por Rick Rubin e que nunca entrou em um álbum de estúdio, apenas na coletânea Pure Cult. Nessa faixa, ficou evidente a importância de ter um baixista de alto nível na banda — o arranjo ficou fenomenal, destacando uma parte instrumental extremamente bem ensaiada.
Ian, como já disse, é uma entidade. Seus movimentos de artes marciais, danças, giros de microfone, além do ritmo marcado com maracas e pandeirola, fazem com que seja impossível desviar o olhar. Mas um público desinteressado em retribuir essa energia acaba não aproveitando o show por completo. Pena deles.
Mirror, do mais recente Under the Midnight Sun, talvez seja minha única ressalva no setlist. Honestamente, há músicas melhores nesse excelente disco. Faixas como Give Me Mercy, Vendetta X ou Impermanence talvez encaixassem melhor e até ajudassem a abrir a cabeça daqueles que se recusam a ouvir material novo.
Uma ótima surpresa foi War (The Process), do Beyond Good and Evil. Com sua atmosfera sombria e letra pesada, foi um presente para os fãs que nunca tiveram a chance de ouvi-la ao vivo — algo que se repetiu com outras músicas ao longo da noite.
Para agradar os mais tradicionais, uma versão reduzida — e incrivelmente hipnotizante — de Edie (Ciao Baby) trouxe o público de volta ao canto. Com um início quase a capella, apenas com Billy e Ian, certamente seria um momento para levantar isqueiros. Mas, em uma casa fechada e lotada, talvez não fosse uma boa ideia.
Em uma transição perfeitamente executada, a banda seguiu para Revolution, adicionada especialmente para a turnê no Brasil. Aqui, era impossível alguém não cantar — afinal, essa música tocou (e ainda toca) bastante nas rádios. O clima seguiu no alto com o hit Sweet Soul Sister, mas logo voltou a dividir opiniões com Resurrection Joe.
Ah, se as pessoas soubessem o privilégio que é ouvir essa música ao vivo… Assim como The Witch, ela nunca saiu em um álbum de estúdio, apenas no EP de mesmo nome. Quem aproveitou, aproveitou.
Daqui para frente, viriam apenas os grandes clássicos (ou quase isso). A iluminação faz toda a diferença, com cores que se transformam e se harmonizam com cada música. Rain foi um sucesso absoluto, cantada por todos — mas como não cantar? Essa é uma das grandes músicas da banda.
Ian está cantando muito bem. Nem sempre segue à risca a melodia das versões de estúdio, mas é justamente aí que reside a beleza: no feeling do momento, na troca de energia. Spiritwalker, do álbum de estreia Dreamtime (um dos pontos altos da noite), e o mega hit radiofônico Fire Woman encerraram a primeira parte do set.
O encore começou com Brother Wolf, Sister Moon, do Love. Talvez esse tenha sido um dos momentos musicais mais bonitos que já presenciei. Uma música intensa, de significado profundo, envolta em uma ambientação quase mística — capaz de emocionar até o coração mais fechado. O solo, em especial, foi simplesmente inesquecível.
Sem delongas, veio a música que nunca pode faltar e que já indicava o desfecho do show: She Sells Sanctuary. Aqui, a nostalgia toma conta. Seja qual for o significado da canção — relacionamentos amorosos ou não —, é inegável que ela carrega uma forte memória afetiva para os fãs.
Com a apoteótica Love Removal Machine, o The Cult encerrou sua soberba apresentação em São Paulo. Antes de deixar o palco, Ian apresentou os integrantes da banda e foi ovacionado pelo público ao ter seu nome gritado em coro. Agradeceu aos céus, à terra e à plateia antes de se retirar.
Talvez por conta do atraso, o set de São Paulo não teve Lucifer (ao contrário do Rio e Curitiba), do álbum Choice of Weapon. Uma lástima.
Pude comparecer aos três shows da turnê, e cada um teve seus diferenciais. No Rio de Janeiro, a banda estava "zerada", e, embora o Vivo Rio não estivesse lotado, o público correspondeu aos estímulos da apresentação, deixando a banda visivelmente feliz e mais interativa com os fãs.
Em São Paulo, a performance foi impecável, mas a plateia pareceu um pouco apática. Já em Curitiba, a casa estava cheia, o público engajado, mas a rotina de aeroportos e viagens já mostrava uma banda talvez um pouco mais cansada.
O que acontece, ao meu ver, é que o The Cult não conquistou uma nova base de fãs significativa nos últimos anos, o que faz com que seu público envelheça junto com a banda. Portanto, caro leitor, dê uma chance aos discos menos comerciais. Apresente a banda aos amigos. E, se o som não for do seu agrado, ao menos vá a um show com o coração e os ouvidos abertos. Podemos ter presenciado as últimas apresentações do The Cult no Brasil.
Sorte a nossa se não for.
Texto: Jessica Tahnne Valentim
Fotos: Amanda Vasconcelos
Realização: Liberation MC
Press: Tedesco Comunicação & Mídia
The Cult - Setlist:
Ride of the Valkiries - Richard Wagner (som mecânico)
In the Clouds
Rise
Wild Flower
Star
The Witch
Mirror
War (The Process)
Edie (Ciao Baby)
Revolution
Sweet Soul Sister
Resurrection Joe
Rain
Spiritwalker
Fire Woman
Bis
Brother Wolf, Sister Moon
She Sells Sanctuary
Love Removal Machine
Ficou bem legal, concordo com sua divisão em 3 tipos de fãs e na "preguiça " de muitos em ouvir uma banda que como o Cult se recusa a se acomodar.
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