Mesmo com o calendário de dezembro repleto de grandes nomes internacionais como Iron Maiden e Dream Theater, foi o Angra quem encerrou o ano com um dos momentos mais especiais para os fãs de metal em São Paulo. No dia 21 de dezembro, o grupo retornou à cidade com a turnê comemorativa dos 20 anos do icônico Temple of Shadows (2004), entregando um espetáculo repleto de técnica, emoção e história.
Na noite anterior e no próprio dia do show, São Paulo foi atingida por fortes chuvas. Quando isso acontece – especialmente em dias de show – surge o receio comum: será que o público vai comparecer? Felizmente, esse temor foi logo dissipado. Os fãs chegaram em peso ao Tokio Marine Hall, muitos vestindo camisetas com a arte do álbum homenageado, prontos para celebrar duas décadas de um dos discos mais marcantes do metal brasileiro.
Coube ao Azeroth, banda argentina ainda pouco conhecida por aqui, a tarefa de abrir a noite. Com um Power Metal bem estruturado e presença de palco segura, o sexteto surpreendeu quem chegou cedo. Formado pelo carismático Ignacio Rodríguez (vocal) Pablo Gamarra e David Zambrana (guitarras), Fernando Ricciardelli (baixo), Daniel Esquível (bateria) e Leonardo Miceli (teclado), a banda mostrou coesão e competência em faixas como “Left Behind”, “Falling Mask” e “The Promise”
Mesmo diante de um público ainda tímido, o Azeroth manteve energia do começo ao fim, e conquistou aplausos entusiasmados — especialmente em “La Salida”, única canção em espanhol da noite. Ignacio aproveitou para homenagear o metal brasileiro, citando nomes como Sepultura, Hibria, Viper e, claro, o próprio Angra. A performance de “Prelude to Oblivion”, do Viper, foi um dos momentos mais marcantes do set.
Fazia tempo que não via uma banda de abertura capaz de empolgar tanto o público, mesmo que a maioria não os conhecesse. Todas as canções foram recebidas com aplausos entusiasmados, particularmente "La Salida", a única música interpretada em espanhol da noite.
O repertório também incluiu uma ótima versão de "Prelude To Oblivion", do Viper, onde Ignacio teve a oportunidade de recordar e prestar homenagem aos saudosos Pit Passarell e Andre Matos.
Os hermanos, que estão em atividade desde 1995, não decepcionaram durante o breve período que passaram no palco, onde deram tudo de si com grande confiança, vigor e felicidade.
Com o público já aquecido pela excelente abertura, o palco se transformou em um verdadeiro altar ao Temple of Shadows. Uma grande estrutura visual com projeções temáticas ocupava alguns cantos do palco, preparando o clima para o que viria. Às 22h em ponto, o Angra surgiu com “Faithless Sanctuary”, faixa do mais recente Cycles of Pain (2023), e iniciou uma sequência poderosa que incluiu também “Acid Rain” e as duas partes de “Tides of Change”, antes de mergulhar definitivamente no clássico álbum de 2004.
Temple of Shadows permanece como o álbum mais celebrado pelos fãs do Angra. Lançado em 2004, o disco expandiu os limites criativos da banda, tanto em termos musicais quanto conceituais. Não é um álbum fácil de executar ao vivo, exigindo precisão instrumental, dinâmica e variações vocais. Quem é músico vai entender exatamente o que estou falando.
A sequência com “Spread Your Fire”, “Angels and Demons” e “Waiting Silence” deixou a plateia em transe. O nível de entrega da banda foi notável. Rafael Bittencourt e Marcelo Barbosa (guitarras), Felipe Andreoli (baixo) e Bruno Valverde (bateria) demonstraram preparo técnico impecável, executando com fluidez um material conhecido por sua complexidade.
A parte vocal do álbum também é repleta de armadilhas, o que gerou algumas críticas a Fabio Lione. Em faixas como “Wishing Well” e “The Temple of Hate”, ele precisou recorrer ao apoio da plateia em trechos mais delicados. Não chegou a comprometer a apresentação, mas também não atingiu a performance ideal que essas músicas exigem. Ainda assim, Fabio compensou com carisma e entrega, especialmente em faixas mais adequadas à sua extensão vocal.
“The Shadow Hunter”, com sua melodia envolvente e atmosfera dramática, emocionou o público — algumas pessoas próximas de mim chegaram às lágrimas. A faixa é, talvez, a mais representativa do conceito do álbum, que narra a trajetória de um cavaleiro templário durante as cruzadas, confrontando fé, violência e espiritualidade. Musicalmente e liricamente, é o ponto alto do disco.
Em seguida, “No Pain for the Dead” trouxe uma participação especial de peso: Vanessa Moreno. A cantora, uma das melhoras vozes mais da MPB da atualidade, tem colaborado com o Angra nos últimos projetos e foi recebida com entusiasmo. Sua presença enriqueceu ainda mais o show.
“Wind of Destination” mostrou o lado mais operístico de Lione, que brilhou na execução vocal. Já “The Sprouts of Time” e “Morning Star” sinalizavam o fim do segmento temático do Temple of Shadows, com um leve esfriamento da energia do público – compreensível, diante da intensidade das faixas anteriores.
“Late Redemption” retomou a conexão emocional. Rafael e Lione dividiram os vocais com competência nas parte em português - originalmente cantada pelo grande Milton Nascimento -, enquanto a plateia assumia as partes cantadas em uníssono. Foi um momento de comunhão entre banda e público.
Antes de encerrar, o Angra ainda entregou mais alguns clássicos. “Make Believe” veio em versão completa, com a banda toda participando, seguida por “Vida Seca”, a última do Cycles of Pain na noite, que recebeu fortes aplausos logo nas primeiras notas. “Rebirth” contou novamente com Vanessa Moreno, num dueto poderoso com Fabio, antes da banda se retirar para um breve intervalo. O bis veio com as indispensáveis “Carry On” e “Nova Era”.
Assistir ao Angra ao vivo é sempre um prazer, mas há algo de especial nessa formação atual, que completará uma década em 2025. Mesmo com os desafios naturais da longevidade, Fabio Lione, Marcelo Barbosa e Bruno Valverde provaram ser mais do que substitutos, e sim peças essenciais. Rafael Bittencourt e Felipe Andreoli, os remanescentes da formação que gravou o Temple of Shadows, seguem como pilares criativos e técnicos da banda.
Essa turnê tem sabor de despedida, pelo menos temporária. Com datas previstas até março de 2025 e uma pausa anunciada logo em seguida, o momento é de gratidão. Nos últimos onze anos, o Angra lançou álbuns consistentes, fez turnês pelo mundo e manteve acesa a chama do metal brasileiro.
Se essa pausa marcar o fim de um ciclo, que seja lembrado como um dos mais criativos e relevantes da história do grupo. Se for apenas um descanso, que o próximo capítulo venha ainda mais grandioso.
Obrigado, Angra!