Nesta era com a predominância das redes sociais fazendo parte do nosso cotidiano, quase que como uma extensão dos nossos corpos, muitas e muitas bandas clamam ter a capacidade de "trazer de volta o som dos anos 80".
Não somente isso, mas há uma consciência coletiva em se contentar sendo "bandas meme", onde a preocupação com um som polido e com algum grau de qualidade real dá lugar a vídeos bestificados cuja única intenção é colecionar visualizações com um humor direcionado a pessoas com um Q.I. de um dígito, minando assim o conceito de "valor".
Felizmente, este não é o caso aqui, pois a COBRA SPELL é a filha de Sônia Anubis (mais conhecida pela sua participação na BURNING WITCHES antes mesmo de ter 20 anos de idade, e por ter feito parte da formação do grupo brasileiro de Death Metal CRYPTA), e seus atos traduzem um grau de educação musical com referências de quem entende aquilo que faz, como Yngwie Malmsteen e Marty Friedman, então uma boa qualidade é um ingrediente já garantido desta fórmula.
Quando se trata da coisa real, da música em si, não há virtualmente mudanças perceptíveis aqui, visto que este não é um material tão novo assim. E pelo que pôde ser percebido, apenas uma única pessoa entrou no estúdio para o propósito central deste lançamento: a vocalista Kristina Vega.
Substituindo o italiano Alexx Panza há cerca de três anos atrás, seu impressionante alcance vocal se casou perfeitamente com o som da COBRA SPELL, e considerando que esta não é uma alteração trivial, vamos logo apontar os dedos ao elefante na sala.
É comum entre aqueles que comparecem aos shows o questionamento óbvio: como seriam as músicas dos dois primeiros lançamentos com a voz da espanhola? Elas teriam sido escritas visando o estilo Geoff Tate da voz original?
PEGO PELO FEITIÇO. PELO FEITIÇO DA COBRA.
Como ela entrou a bordo antes do lançamento do primeiro álbum de fato (intitulado “666”, no final de 2023), era inevitável que ela teria que tomar a responsabilidade de cantar o repertório disponível nos dois primeiros trabalhos: os EP “Love Venom” (de 2020) e “Anthems of the Night” (de 2022). Tendo um feedback quase unânime do público em relação ao que ela nos ofereceu, a ideia que culminou com este EP se tornou tão comum quanto o nascer do Sol.
Pareceu-me que um ou outro leve efeito foi utilizado nas partes vocais, ou talvez seja apenas impressão minha. A questão aqui é que o conteúdo presente nos dois primeiros EPs possuem alguma diferença quando postos numa comparação direta com o álbum “666”, já que a sensação “Album-oriented Rock” (doravante conhecida como AOR) está mais presente nos dois primeiros casos.
Deve-se frisar que eles foram publicados de maneira independente (assim como este), sendo assim, sem envolvimentos de gravadora e com mais liberdade criativa. No momento em que ouvi “FLY AWAY” pela primeira vez, fiquei convencido de que ela é remanescente dos trabalhos anteriores antes da assinatura com a Napalm Records.
Suas letras não irão ganhar nenhum prêmio, só que “letras” não são, e nem deveriam ser o tópico principal em análise numa música, ao menos é o que eu defendo. Seu conteúdo sonoro sim, tanto que ela tem um solo tão intenso que é capaz de se comunicar com o próprio núcleo da sua alma, sendo um testamento do poder de composição da líder holandesa (mais sobre isso mais tarde).
E é por estas e outras razões que “Anthems of the Venomous Hearts” se mostra um lançamento interessante, mesmo que todas as faixas presentes nos EPs anteriores não tenham sido agraciadas aqui (até “THE MIDNIGHT HOUR”, que contou com um clipe, foi guilhotinada). Pode ser também que a existência disso aqui signifique um orgulho pelas primeiras canções feitas pela COBRA SPELL, quem sabe? Tendo dito isto, analisemos o arsenal aqui presente.
OS ANOS 80 ESTÃO VIVOS E BEM, MUITO OBRIGADO
"FLAMING HEART", naturalmente, ganha os holofotes deste lançamento. Anteriormente disponível apenas via mídia digital, é aqui que finalmente a canção está presente em formato físico, para os aficionados em colocar as suas mãos em discos. "FLAMING HEART" carrega a alma de uma balada dos anos 80, pesadamente influenciada por DOKKEN e VIXEN, e é uma música que não soaria fora de lugar numa trilha sonora de um filme da época a qual presta homenagem.
A força pela qual ela extrai é capaz de te deixar com um senso de nostalgia por algo que você não experenciou. Só que você esteve lá, porque há memórias escondidas deste momento localizadas nos recessos do seu coração.
"MOERU KOKORO" chega a ser a única novidade marcando presença, só que é exatamente a exata mesma coisa, com a diferença de ter letras em japonês, demonstrando o leque de habilidades que a vocalista Kristina Vega tem em seu arsenal em um idioma tão complicado para sequer ser pronunciado para a população ocidental.
Parando para pensar, sua inclusão dá um toque internacional à discografia, de uma banda que já contou com membros de vários países de uma vez só (incluindo o Brasil, na forma da ex-guitarrista Noelle dos Anjos, cuja contribuição engrandeceu bastante a banda espanhola).
Uma curiosidade: em um vídeo de anos atrás postado nas redes sociais pela própria Sônia, ela revelou que POISON BITE foi composta em meia hora, no seu quarto. E certamente ela foi escrita após uma maratona ao estilo Netflix de ROCK GODDESS, já que a influência aqui é clara, somada com a performance mais enérgica e teatral de todo o repertório na sua versão ao vivo (quem já viu um show da COBRA SPELL sabe muito bem do que estou falando com isso aqui).
Não é tão recomendável ouvir “ACCELERATE” enquanto dirige, já que o(a) motorista corre o risco de alcançar a velocidade dos carros da franquia de videogames F-ZERO: afinal, só vale à pena se ultrapassar a marca dos 666 km/h, o que não impede dela ser beneficiada com os agudos de Kristina.
Alguém poderia achar que “SHAKE ME” é uma inclusão um tanto quanto aleatória, mas há um motivo simbólico para isso: a canção inteira é um elogio ao MÖTLEY CRUE, notadamente de “DR. FEELGOOD”, o que remete àquela menção sobre as raízes AOR vindas de “Love Venom” e de “Anthems of the Night”. Embora ela não seja tão memorável quanto as 3 outras entregas do “Love Venom”, ela ainda assim deixa a sua contribuição, em especial pelo seu refrão relativamente cativante.
HINOS NÃO SÃO TEMPORÁRIOS, SÃO PASSADOS DE GERAÇÃO A GERAÇÃO
Desnecessário dizer que ADDICTED TO THE NIGHT é um dos principais chamativos, usada geralmente nas apresentações ao vivo para finalizar os shows. Há uma verdade revirada em pedras de que se você produz um conteúdo ao ponto do destinatário responder com lágrimas (não de tristeza, mas de alegria), então o título de "artista" deixa de ser uma massagem de ego e se torna legítimo. O que é precisamente a descrição do dicionário para o interlúdio da faixa acima.
Tocada em sua totalidade somente em shows, aqui vemos o motivo de Sônia Anubis ser um dos nomes vistos com entusiasmo até mesmo para os ouvidos cansados de pessoas com décadas de experiência e que costumam rejeitar o novo.
É um solo executado lindamente com uma sinergia entre humano e instrumento, ao ponto da Sônia conseguir extrair um peso sentimental da sua Jackson, característica esta vista em várias ocasiões pelo ilustre Chuck Schuldiner, do DEATH, por exemplo. Então se você já se questionou se uma guitarra pode chorar, este é o momento em que você encontrará a resposta desta pergunta tão complicada.
Então, no final das contas, o que você recebe é um trabalho divertido, melódico e que carrega a herança de alguns dos fundadores do gênero ao qual a banda faz parte. Apesar de um grupo como a COBRA SPELL estar em perigo constante de ser acusado de uma carência de originalidade, abordá-los dessa maneira é uma mentalidade errada.
Fica claro que o quinteto deseja prestar homenagens aos seus "heróis" dos anos 80, assim como utilizar esses ensinamentos ao trazer algo fresco para a mesa com uma roupagem atual. Ajuda com o fato de que a produção como um todo possui uma "mordida venenosa" bem moderna.
Aqueles que procuram uma mescla de Heavy Metal tradicional com Hard Rock sem ser super complicado, uma performance vocal capaz de impressionar quem tem ouvidos veteranos no ramo e solos da variante técnica “na medida certa” se sentirão em casa aqui.
Algumas pessoas precisam de drogas para sentirem a adrenalina necessária em fugir dos problemas da vida, ainda que temporariamente. Mas se você só precisa se alimentar com um som que soletra P-A-I-X-Ã-O para alcançar o mesmo objetivo, então a COBRA SPELL é exatamente o que o médico recomendaria.
Destaques principais: “Flaming Heart”, “Addicted to the Night” e “Poison Bite”
Placar: COMPRE
Texto: Bruno França
Edição/Revisão: Caco Garcia
Fotos: Divulgação
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