sábado, 10 de agosto de 2024

Uganga: Liberdade, Amor à Música e Sem Máscaras

Por: Renato Sanson/Carlos Garcia


Desde os anos 80 batalhando na cena Metal mineira e brasileira, Manu Joker teve suas primeiras experiências com o Angel Butcher, lançando demos que posteriormente foram relançadas no exterior, e com uma passagem marcante pelo Sarcófago, lançando com a banda o EP "Rotting" (1989), que se tornou um clássico e referência a muitas bandas de Metal extremo. 

Mas a principal referência ao trabalho e capacidade criativa de Manu com certeza é o Uganga, banda a qual fundou em 1993, e se desafia e evolui a cada álbum.

Conversamos com Manu sobre o Uganga, Sarcófago, Manu Joker and The Rottens e muitos outros assuntos e histórias, as quais fazem parte do relicário do Metal e som pesado brasileiro.

Foto por Luan Ferreira

RtM: Manu, resuma pra gente como foi o inicio do Uganga? Pois a banda está ativa há bastante tempo, certo?

Manu Joker: Cara o Uganga foi criado por mim em Uberaba no ano de 1993, ou seja, ano passado celebramos 3 décadas na ativa sem nenhuma pausa. 

Inicialmente era um projeto paralelo já que todos os integrantes tinham outras bandas, porém com o tempo passou a ser nossa prioridade. Vieram mudanças de formação, 7 álbuns, várias tours pelo Brasil e Europa e inúmeras histórias incríveis. Tem sido uma jornada interessante.


RtM: Em sua época de Sarcófago você era baterista, mas no Uganga assumiu as vozes. Como foi lidar com essa mudança?

Manu: Na verdade no início do Uganga eu também era baterista, assumi o posto de vocalista pouco antes das gravações do nosso primeiro álbum “Atitude Lótus” de 2002. 

Nesse disco inclusive eu também toquei bateria em praticamente metade das faixas. Como nós vínhamos tendo dificuldades com os vocalistas, acabei assumindo o posto e meu irmão mais novo, Marco Henriques, veio pra batera. 

Mesmo na época que era o baterista eu sempre cantei algumas músicas, tanto no Angel Butcher quanto no início do Uganga, então acabou sendo uma transição tranquila. A real é que sempre me vi mais como vocalista do que baterista, mas obviamente amo tocar batera.


RtM: Em termos líricos a mensagem passada pela banda traz muito da realidade em que vivemos e muitas criticas ao modo governamental do nosso país. Como é construir as letras para casarem com a sonoridade?

Manu: Eu falo do que está a minha volta, falo sobre o que me inspira, instiga e também sobre o que irrita (risos). Se a gente olhar pela janela não veremos só flores, o mundo é um lugar rude, cruel e belo ao mesmo tempo. 

Tento usar todas essas tonalidades em minhas letras, sempre buscando algo de positivo com esses questionamentos assim como emoldurar essa lírica com uma sonoridade que também represente essas paisagens e emoções diversas.


RtM: Em 2013 vocês lançaram o álbum “Eurocaos ao Vivo” em sua passagem pela Europa. Como foi a recepção dos fãs referente à banda cantar em português?

Manu: Surpreendentemente positiva. Eu esperava algum tipo de rejeição pelo fato de nossas letras serem em português, mas ocorreu exatamente o contrário, fomos muito bem recebidos nas duas tours internacionais. 

Eu acho que o público europeu tem a cabeça mais aberta em relação a esse lance da língua, tanto é que por lá nós tocamos com bandas que cantam em húngaro, alemão, sueco e polonês, além-claro de inglês, e foi uma experiência muito enriquecedora. 

Eu sempre procuro explicar antes, geralmente em inglês ou espanhol, sobre os temas das letras e isso nos aproxima mais do público. Prefiro cantar com verdade, usando minhas gírias, falando sem máscaras e do meu jeito, do que com um sotaque caricato que pode inclusive tirar a poética da escrita. Acredito que lá fora boa parte do público tem concordado comigo nessa visão.


RtM: A cada álbum o Uganga explorou novos elementos, você acredita que essa coragem de experimentar, de buscar caminhos diferentes são fatores que contribuem para um artista se manter relevante e também se desafiar, não perdendo a gana de criar novas músicas? Vejo muitos artistas e bandas que parecem ter se tornado meras cópias de si mesmo.

Manu: Concordo com vocês, muitas bandas simplesmente repetem clichês por décadas e vivem de passado, mas esse definitivamente não é o nosso caso. O Uganga é regido pela liberdade, pelo amor a música e por uma visão de mundo onde as emoções não são suplantadas pelos modismos. 

Não posso falar pelos outros, mas no meu caso eu tenho definitivamente a necessidade de ser livre, inclusive artisticamente. Isso não quer dizer que nosso som não tenha uma assinatura ou influências, eu vejo os elementos que caracterizam a sonoridade do UG em todos nossos álbuns, mas acredito que encontramos a nossa fórmula de experimentar sem descaracterizar a essência.

Foto por Luan Ferreira

RtM: Sobre a discografia do Uganga você poderia nos descrever em poucas palavras cada um dos álbuns?

Manu: "Atitude Lótus (2002)": Um álbum experimental e nosso trabalho menos pesado. Ele registra o momento inicial do UG e reúne material composto nos primeiros anos. Tenho muito orgulho desse trampo apesar de soarmos como outra banda. Creio que a essência já estava ali.

"Na Trilha Do Homem De Bem (2006)": O nosso disco de transição, o elo entre a fase inicial mais leve e a retomada crossover que viria no nosso terceiro álbum. Esse disco reúne elementos dessas duas fases e foi meu primeiro somente como vocalista.

"Vol. 3: Caos Carma Conceito (2010)": Um álbum muito importante que abriu várias portas. Consolidou nosso estilo e até hoje reverbera. Faixas como “Fronteiras da Tolerância” e “Meus Velhos Olhos de Enxergar o Mal (2 Lobos)” são praticamente obrigatórias no set list.

"Eurocaos - Ao Vivo (2013)": Um registro cru, sem truques e artimanhas de estúdio, do que era uma apresentação do Uganga em 2010. Esse material foi gravado em Datteln (Alemanha) no Razorblade Festival e fora o nosso set completo naquele dia tem vários bônus bem interessantes, como por exemplo: versões de “Troops Of Doom” (Sepultura) e “Nightmare” (Sarcófago) extraídas de uma apresentação em Portugal. Tanto esse álbum quanto o “Vol. 3” foram lançados também na Europa.


"Opressor (2014)": Um disco pesado, visceral e com certeza um dos nossos melhores trabalhos. “Opressor” ao meu ver leva alguns passos além a sonoridade do “Vol.3” e rendeu nossa maior tour até aqui, tocamos com Exodus, Coroner, Catedral, Olho Seco, RDP e várias outras bandas que amamos. É outro que também foi lançado na Europa e aqui no Brasil além da opção em CD também saiu em vinil verde.

"Manifesto Cerrado - DVD (2017)": Esse material possui um longa metragem de mesmo nome que retrata nossa trajetória do início da banda até o ano de 2019. Além disso tem também uma apresentação mais intimista do Uganga num prédio histórico aqui da região chamado “Estação Stevenson”. Recomendo muito ambos os materiais que estão disponíveis no nosso canal do YouTube.

"Servus (2019)" - Ao menos até hoje esse é o meu preferido. “Servus” é o único álbum gravado como sexteto, com 3 guitarras, e foi lançado pelo selo alemão Wacken Foundation. Todas as características da banda estão ali, o peso, o groove, a velocidade, a desaceleração, a espiritualidade e o cinismo punk. Foi um álbum ousado, trabalhoso, intenso e também foi, infelizmente, nosso álbum pandêmico. 

Entre outras situações já estava fechada nossa terceira tour na Europa e iríamos pela primeira vez pra Rússia e, de repente, me vi trancado em casa. Mesmo assim fizemos alguns shows legais antes do lockdown tocando ao lado de bandas como: Corrosion Of Conformity, Rattus, Garotos Podres, Black Pantera, Pato Fu entre outras. Amo esse play!

"Libre! (2022)" - Eu encaro o “Libre!” como outro álbum de transição assim como também uma continuação da sonoridade do “Servus”. Esse disco manteve a banda viva e aponta para uma nova fase agora como quarteto e que vai mostrar a que veio muito em breve com o novo álbum. 

É nosso único trabalho que não tem 13 faixas e o primeiro a não passar de 25 minutos de música e gostei muito desse formato. Álbuns como “Reign In Blood” (Slayer), “Cavalo de Pau” (Alceu Valença) e mesmo o “Rotting” tem essas características e é algo que faremos de novo no próximo. É desse disco minha música preferida do UG “Retrovisor”.


RtM:Voltando no tempo, conte-nos um pouco sobre a sua passagem pelo Sarcófago, quais as principais lembranças que você guarda, tendo participado daquela época em que surgiram muitas bandas importantes no cenário mineiro. Inclusive o “Rotting” foi composto e até em parte gravado na sua casa, não é?

Manu: Na verdade o álbum foi composto e ensaiado aqui em casa e gravado no mítico JG Estúdio em BH. As lembranças dessa fase são as melhores possíveis, estávamos extremamente focados em dar o nosso melhor e levamos 12 dias para terminar tudo. Vez ou outra nos encontrávamos com amigos de bandas como Sextrash, Witchhammer, Holocausto ou Overdose para conversas e algumas cervejas, a cena na cidade estava em total ebulição nessa época.


RtM: Ainda sobre o EP “Rotting”, que é até hoje muito celebrado pelos fãs de Metal extremo, em sua visão, qual a importância desse legado?

Manu: “Rotting” segue sendo meu preferido dentre a discografia da banda e não é porque eu toquei nele. Vejo esse disco como uma evolução natural do “INRI”, antes da guinada pro Thrash/Death ocorrida em “The Laws Of Scourge” e acho as letras mais legais também. É o tal “disco de transição” e um item da minha discografia que muito me orgulha.


RtM: Até hoje se fala de certa “disputa” entre algumas bandas da época, o que você lembra a respeito e o que realmente existia em termos de competição ou alguma animosidade.

Manu: A competição positiva sempre vai existir entre as bandas e acho isso saudável, você se motiva a ir além. O foda é quando isso descamba pra ódio, violência etc… Teve um período aí onde Sarcófago e Sepultura foram para esse lugar e coisas não tão legais aconteceram. Apesar de ser um ex-Sarcófago eu nunca tive nenhum problema com o Sepultura, muito pelo contrário.


RtM: Lembro que alguns anos atrás, um tributo ao Sarcófago tomou forma com você e outros ex-integrantes. Como surgiu e porque não seguiram adiante?

Manu: A ideia era fazer só alguns shows pontuais celebrando os 25 anos da “Warfare Noise 1” e deu muito certo. Além de 6 cidades no Brasil fizemos um festival foda em Santiago (Chile) ao lado do grande Possessed (EUA).


RtM: Atualmente você também tem o Manu Jokers & The Rottens, com vários músicos experientes, gostaria que nos falasse um pouco mais sobre esse projeto, e se é algo que vocês podem levar além de tocar o “Rotting” na íntegra e outras versões, de repente produzir músicas inéditas nessa linha?

Manu: O MJTR é um projeto de metal/punk extremo oitentista porém olhando prós dias atuais, ao meu ver é trazer pros palcos de hoje músicas que fazem parte da minha história sem querer soar saudosista. 

A vida segue… Estão comigo nessa empreitada meus irmãos Maurício Nogueira (ex-Krisiun, Matanza, Torture Squad etc…), Bráulio Drumond (Dorsal Atlântica) e Igor Wallace (Rëstos). Além de executar o “Rotting” na íntegra tocamos material do Angel Butcher (minha banda pré Sarcófago) e outras homenagens aos nossos heróis do underground brasileiro. Sobre material novo com certeza isso vai acontecer em algum momento.

Foto por Luan Ferreira

RtM: Você também trabalha como produtor, conhece os dois lados, quais as principais dificuldades ainda enfrentadas pelas bandas e produtores na questão de condições para shows e turnês? O que mudou dos anos 80 e 90 para cá?

Manu: O underground sempre será um lugar de luta, dificuldades e auto afirmação de vontades. Creio que hoje em dia está mais fácil tocar, porém a oferta muitas vezes é maior que a demanda. 

Você pode organizar tours e gravar discos por sua conta com uma acessibilidade que não existia nos anos 90, mas ao mesmo tempo a corrida por likes e seguidores tem inundado o mercado com porcarias sem alma, tá tudo muito padronizado, geral pagando de juiz sem nem limpar o próprio rabo e isso ao meu ver é o lado negativo mais gritante.


RtM: Você sempre expressa seus posicionamentos te políticos e sociais, o que você acha a respeito de pessoas que dizem que o artista deve simplesmente fazer sua música, subir no palco e tocar e pronto, não ficar dando opiniões ou fazendo discursos sobre a sociedade, temas atuais ou posicionamentos políticos?

Manu: Eu não julgo quem não quer se posicionar politicamente, cada um faz o que quiser com sua arte. O que não abro é do meu direito de falar sobre o que eu quiser, onde quiser e quando eu quiser. Escrevo muitas vezes sobre a realidade a minha volta, e essa realidade nos oprime deixa de guarda alta e preocupados com nosso futuro nesse planeta.


RtM: Estamos vendo nos últimos anos um aumento da procura pelas mídias físicas, com as vendas de LPs, e agora novamente o CD, aumentando e com um público novo também se interessando pelas mídias físicas. Pode ser um fator que favoreça nosso nicho? Como você vê a viabilidade hoje e em médio prazo o investimento das bandas em material físico?

Manu: Eu tenho visto as pessoas voltarem a gastar com vinis, cds e até fitas K7 e fico feliz com isso. Vai chegar uma hora que ficar ouvindo trechos de 15 segundos no TIk Tok não vai mais resolver, não trará preenchimento e muitos vão se tocar que não existe nada como apreciar um trabalho completo com arte gráfica, músicas e conceito bem alinhados.


RtM: Com esses anos todos de estrada e vários shows e álbuns lançados, o que você almeja ainda alcançar como artista?

Manu: Eu almejo seguir fazendo o que amo, com saúde e energia positiva. Estamos trabalhando em um documentário da banda, temos muitas datas daqui pro final do ano em várias regiões do país e vamos iniciar as gravações do oitavo álbum. 

As músicas estão matadoras, é UG 100% e muito mais. Esperem, confiram e se possível nos digam o que acharam depois. Também está nos nossos planos a terceira tour internacional. Vamos em frente pois tem muito mais, salve!


Fotos: Acervo do artista e Luan Ferreira Fotografia e Videografia 

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